COSMOVISÃO: Uma cosmovisão bíblica sobre a criação, pecado e cultura - Se Liga na Informação





COSMOVISÃO: Uma cosmovisão bíblica sobre a criação, pecado e cultura

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Por Cristiano Nickel
INTRODUÇÃO
Imagine que você está em uma sala de concerto, apreciando uma linda orquestra interpretando a majestosa obra de J.S. Bach, Concerto de Brandemburgo No. 1em F maior. Duas trompas, três oboés, um fagote, três violinos, uma viola, um violoncelo e um cravo. Todos esses instrumentos soam a boa música barroca que transcende o ambiente. De repente, surgem, no palco, alguns indivíduos que desafinam todas as cordas, e obstruem todos os instrumentos de sopro. Uma grande catástrofe dissonante e desafinada atinge os ouvidos da plateia, que não suporta o som desarmônico.  No entanto, você está ouvindo, mesmo de maneira desconfortável, os instrumentos com seus timbres  – violino com som de violino, oboé com som de oboé.
Assim é a boa criação que Deus fez – como uma bela orquestra onde os instrumentos afinados desempenham a boa melodia, harmonizando-se com o conjunto e revelando a mais bela obra musical jamais vista. O pecado, no entanto, entrou no palco da criação e direcionou-a para um fim que não se harmoniza e não se adequa com o bom propósito de Deus. Mas, em sua natureza intrínseca, e de acordo com os desígnios de Deus para com a criação, os relacionamentos, a criatividade, a natureza, o conhecimento, são como os instrumentos da orquestra que desempenham sua função, mesmo eu desafinado, ou melhor, mesmo que afetado pelo pecado.
O presente estudo tem como objetivo apresentar, dentro de uma cosmovisão bíblica, as implicações da Queda, bem como a sua relação com a estrutura criacional. Inicialmente, discutiremos as questões elementares da narrativa de Gênesis 3 a 11. Em seguida, abordaremos o problema do dualismo na criação no que se refere à ordem criacional (estrutura) e ordem de redenção/queda (direção).
1. UMA SÍNTESE SOBRE A QUEDA
1.1 Tentação
Esboçando a história bíblica em Gênesis 3, vemos a história de uma serpente que persuadiu Eva a desobedecer a Deus, comendo do fruto proibido. Ela deu o fruto a Adão, que por sua vez também comeu. Deus os julgou e os expulsou do jardim para um mundo que também sofreria julgamento e castigo (GOLDSWORTHY, 2018).
Não há nenhuma explicação do porquê Satanás se tornou mal e nem como a serpente o representa no jardim do Éden. Goldsworthy (2018) incentiva a usar os óculos do evangelho e da mensagem total da Bíblia, quando lidamos com a narrativa de Gênesis 3, para que não haja distrações e aberrações hermenêuticas.
O drama da Queda começa com a seguinte pergunta: “É assim que Deus disse […]?” (Gn 3.1). Deus criou o mundo pelo poder de sua palavra. E palavras são signos e códigos que representam comunicação entre os comunicadores. A pergunta da serpente incitou a dúvida de obedecer ou desobedecer a palavra de Deus para a interpretação da realidade. A serpente semeou dúvidas sobre as credenciais da palavra de Deus (GOLDSWORTHY, 2018). Quando há especulação de que a palavra (de Deus) deve ser analisada e avaliada, é necessário buscar a palavra de uma autoridade ainda maior que Deus, o que é impossível (GOLDSWORTHY, 2018). A afirmação da serpente, “com certeza, não morrereis”, evoca oposição direta – Deus é acusado por ser egoísta; ele não é amoroso e nem digno de confiança. A tentação no Éden corresponde “a insinuação de Satanás de que a palavra de Deus não poderia ser invocada como a autoridade absoluta e fonte de verdade para a humanidade (GOLDSWORTHY, 2018).
1.2 Obediência versus desobediência
Ser humano é ter liberdade de escolha. Em Gênesis 3, o ser humano resolve ceder à tentação de ser autônomo (do grego, autos, “si mesmo”, e nomos, “lei”). Ao invés de obedecer a Deus, Adão e Eva pretende desafiá-lo. (GOHEEN, 2017, p. 50-51). O ser humano escolheu a si mesmo como “a fonte para determinar o que é certo ou errado, em vez de confiar na palavra de Deus e sua orientação”. (GOHEEN, 2017, p. 51). Após a queda, a vida física de Adão e Eva não termina quando provam do fruto. Mas algo morre: a percepção relacional de si e do outro são destruídos. O constrangimento, consequência da decisão, revela a nudez, onde eles se cobrem com folhas de figueira, sentindo vergonha. O relacionamento com o Criador é destruído – eles se escondem de Deus por causa da vergonha e do medo (GOHEEN, 2017, p. 51).
Há uma escolha ou uma decisão diante das afirmativas da serpente: conhecer o bem e o mal rejeitando o mal e permanecendo bom ou rejeitar o bem se tornar mau. Como optaram por não confiar na palavra do Criador, eles não consideraram Deus como autoevidente Criador e Senhor, eles reduzindo-o à condição de criatura. A partir desse momento, a verdade passou a ser analisada e avaliada de acordo com a natureza intrínseca dos seres humanos. Eles se tornaram como Deus (GOLDSWROTHY, 2018).
1.3 Pecado-juízo-graça
A culpa entra como justificativa. O homem culpa a Deus pela mulher; a mulher culpa a serpente e Deus sentencia o ser humano, a serpente e a terra (Gn 3.12-13). A culpa é a prova de que o pecado distorce o relacionamento do homem com Deus, com os outros e com a terra.
Em Gênesis 3.15, percebemos o proto-evangelho, onde Deus amaldiçoa a serpente, implicando graça para a raça humana com o intuito de recuperá-la da Queda. (WOLDSWOTHY, 2018). Há um juízo sobre a mulher (Gn 3.16), onde a dor entra como uma realidade no mundo caído. Essa dor não é apenas as contrações que as mulheres sentem durante o parto, mas a dor da perturbação na relação humana mais íntima – o casamento entre o homem e a mulher. Paixão e poder caracterizam os instintos do homem caído e o prazer sexual passa a ser acompanhado de dor e tristeza (GOLDSWORTHY, 2018). Para o homem, o castigo tem a ver com o domínio sobre a terra e todas as outras criaturas. O domínio da criação é contestado em todos os lugares. Adão, como o rei da terra, agora se torna servo dela. A terra se torna uma maldição sobre ele, pois “o fim do homem é alimentar a terra voltando ao pó do qual veio” (GOLDSWORTHY, 2018).
Mesmo em um cenário de julgamento e maldição, a graça de Deus permite que uma raça caída viva para um propósito maior. No entanto, a humanidade aguarda a morte como um fim definitivo e inevitável (GOLDSWORTHY, 2018). O pecado trouxe a sentença de morte: o relacionamento com Deus foi destruído, e a relação entre os homens encontram oposição, e a terra sofre as consequências de uma decisão de se tornarem Deus.
Em Gn 3.21, Deus provê para a vergonha de Adão e Eva, vestes com peles de animais. Segundo Goheen (2017, p. 53), no Antigo Testamento, “remover as roupas de alguém podia significar a privação de sua herança; a provisão feita por Deus de roupas para Adão e Eva é um sinal de que o Senhor não desistiu de seus propósitos para eles”. Diante do constrangimento, do medo e da vergonha do que fizeram e de encarar Deus face a face, ao invés de receberem a sentença de morte imediata, Deus dá roupas, e sentencia uma promessa em que o descendente de Eva esmagará a serpente (GOHEEN, 2017, p. 53) (GONZÁLEZ, 2011b, p. 62).
Pecado exige juízo, juízo exige graça. Esse ciclo é evidente entre Gênesis 3 e 11. Caim, o primeiro assassino, mata Abel por motivos de ciúmes (Gênesis 4.); Caim, por sua vez, cria uma cidade autossuficiente e independente de Deus (Gn 4.17-24).  Lameque escreve um poema se vangloriando de ser mais vingativo do que Caim (Gn 4.23); em Gênesis 6, Deus vê a perversidade da humanidade indo em uma direção “sempre e somente para o mal” (Gn 6.5). Deus envia o dilúvio, mas preserva Noé e sua família e assim, recomeçando a descendência da raça humana. Após o dilúvio, vemos novamente a humanidade se rebelando contra Deus, construindo mais uma cidade, Babel (Gn 11). À medida que o pecado se desenvolve, o juízo é mais severo e a graça, mais eficiente.
REFERÊNCIAPECADOJUÍZOGRAÇA
Adão e Eva no Éden (Gn 3)Comer do fruto proibidoRastejar da cobra; dor no parto; ervas daninhas; trabalho sofrido e expulsão do JardimRoupas; filhos
Caim e Abel (Gn 4)AssassinatoTerra não dá fruto; andarilho sem proteçãoMarca de proteção
Dilúvio (Gn 6—9)Aumento geral da maldadeDilúvio destruidorArca de Noé
Torre de Babel (Gn 11)Invasão da morada divina (arrogância)Línguas confundidas; povos espalhadosChamado de Abraão (Gn 12)
As cidades, na Bíblia, como Babel, Sodoma e Gomorra, Egito, Canaã, Babilônia e Roma – foram cidades que apresentaram a máxima expressão de perversidade humana (GOLDSWORTHY, 2018). Os descendentes de Caim e as pessoas de Babel, por exemplo, desenvolveram o mandato cultural: domesticação de animais, música, engenharia, tecnologia e arte. Mas, no meio desse desenvolvimento, os efeitos parasitários do pecado como a violência, o orgulho e a autonomia de Deus, acarretou juízo Todo o desenvolvimento cultural, para não entrar em colapso e caos, é sustentado pela graça comum de Deus – essa graça é a “dádiva da preservação da raça durante um tempo, mas não é a graça que age para redimir um povo e lhe restaurar a amizade com Deus” (GOLDSWORTHY, 2018).
2. IMAGO DEI E A IDOLATRIA
Para Wolters e Middleton (2010, p. 55), os “seres humanos são criaturas inerentemente religiosas”. Não podemos viver sem um centro de referência divina (FOWLER, 1992), mesmo que este seja fabricado por nós. Ou servimos a Deus e o obedecemos, ou servimos aos ídolos em desobediência.
O entendimento sobre a imago Dei revela algumas considerações sobre a desobediência humana principalmente sobre a idolatria. “Qual é a relação entre nossa criação à imagem de Deus e a escolha pactual de servir a Deus ou os ídolos?” (WALSH E MIDDLETON, 2010, p. 55).
Nas Escrituras há um dualismo evidente: Criador e criatura. Quando não colocamos Deus como centro de referência em nossa adoração, colocamos outras coisas para ocupar esse centro, elevando-as à condição de criatura. (WALSH E MIDDLETON, 2010, p. 56). Há uma categoria delineada e intrínseca em nossa natureza religiosa que não nos permite cultuar dois deuses. Jesus afirmou “que é impossível servir a dois senhores” (Mt 6.24).
Apesar de nosso entendimento sobre idolatria significa rejeitar a Deus e adorar outro ídolo, no mundo antigo isso ia muito além. “A Bíblia usa o termo imagem para se referir tanto aos seres humanos quanto aos ídolos. Qual é o significado de um ídolo ser uma imagem, em particular a imagem de um deus?” (WALSH E MIDDLETON, 2010, p. 57).
2.1 Ídolos: usurpando nosso lugar
No mundo antigo o ídolo não era considerado um deus em si. Mas era visto como o “meio pelo qual a deidade se tornava presente para a majestade. Ele era a incorporação visível do deus, representando seu poder e majestade” (WALSH E MIDDLETON, 2010, p. 57). O ídolo era uma manifestação concreta, física e visível, um meio pelo qual a divindade se tornava presente. “Assim como o ídolo era considerado ser a manifestação local, visível do deus, o meio pelo qual ele se tornava presente, também se pressupõe, em Gênesis, que os seres humanos representem Yahweh na terra” (WALSH E MIDDLETON, 2010, p. 57).
O Espírito e o poder acompanham o ser humano, onde ele exercita seu domínio sobre a terra através deles. Imago Dei e mandato cultural possuem uma ligação fundamental. Os seres humanos “são embaixadores de Deus, seus representantes para o restante da criação. Seu Espírito e poder o acompanham, e ele exercita seu domínio sobre a terra por meio deles (WALSH E MIDDLETON, 2010, p. 57).
Representamos corporalmente a imagem de Deus. Não apenas a parte espiritual e interior, mas a pessoa como um todo é criada à imagem de Deus para refletir a glória de Deus e representá-lo na terra por meio de nossa presença física, completa. Essa visibilidade é essencial, pois tornamos Deus invisível visível; em todas as nossas atividades culturais devemos demonstrar visivelmente o governo amoroso de Yaweh (WALSH E MIDDLETON, 2010, p. 58). Idolatria é não fazer Deus visível. O ser humano, em vez de cumprir e aceitar essa tarefa de representar Deus na terra, projeta essa responsabilidade aos ídolos. Walsh e Middleton concluem: “A idolatria usurpa não apenas o lugar próprio de Deus, mas o nosso também […] ela contradiz o reinado legítimo de Deus como Senhor do universo e nosso chamado humano fundamental de representá-lo em obediência cultural diária – para refleti-lo em nossa vida” (WALSH E MIDDLETON, 2010, p. 58).
3. RELAÇÃO ENTRE A CRIAÇÃO COMO ESTRUTURA E O PECADO COMO DIREÇÃO
Toda a corrupção está relacionada com a boa criação, onde o pecado não a anula, mas se identifica com ela. Embora sejam distintos, criação e pecado estão “intimamente entrelaçados na nossa experiência (WOLTERS, 2006, p. 67). A violência não elimina a bondade e o amor, a prostituição não elimina a bondade da sexualidade humana, o subjetivismo e desconstrutivismo da arte, não elimina a possibilidade de fazer arte. A perversão da criação não deve ser entendida como inferior à ordem da criação, e nunca a criação deve ser analisada e avaliada como uma função de perversão e redenção – elas coexistem (WOLTERS, 2006, p. 68). O pecado tem o caráter de uma imagem distorcida, mas que contém elementos perceptíveis.
Um ser humano após a queda, é um ser humano; a escola humanista ainda é uma escola; um relacionamento rompido ainda é um relacionamento […] em cada caso, o que na criação “ainda é” aponta para a bondade duradoura da criação. (WOLTERS, 2006, p. 68)
3.1 Estrutura e direção
Para entender melhor, Wolters (2006, p. 69) explica que na criação existe estrutura e direção. Estrutura é fundamentada na lei da criação, no decreto de Deus quanto às suas diferentes criaturas. Filosoficamente pode ser entendida como substância, essência e natureza. Direção significa “ordem do pecado e da redenção, a distorção ou perversão da criação em Cristo por outros […] qualquer coisa na criação pode ser direcionada para Cristo ou para longe dele – direcionada para a obediência ou desobediência à sua lei (WOLTER, 2006, p. 69). Essa direção não se refere apenas aos seres humanos individuais, mas também às produções culturais (WOLTER, 2006).
Incorremos no engano quando escolhemos, analisamos e julgamos “algum aspecto ou fenômeno da boa criação de Deus e identificando-a como vilão no drama da vida humana e não como uma intrusão da apostasia humana (WOLTERS, 2006, p. 71). Reduzir a direção da criação à uma estrutura delineada – como a dicotomia bem-mal intrínseca à criação, é uma tendência da filosofia do gnosticismo, onde “alguma coisa” na boa criação ser declaro mau. No decorrer da história, “parece haver um traço gnóstico, enraizado no pensamento humano, que faz com que as pessoas culpem alguns aspectos da obra da mão de Deus por todas as aflições e desgraças do mundo em que vivem (WOLTERS, 2006, p. 71). Para Wolters, as Escrituras são a única estrutura que rejeita todas as alternativas de confundir estrutura e direção ou “de identificar parte da criação como o vilão ou salvador” (WOLTERS, 2006, p. 72).
Quando pressionamos uma mola, sentimos que por mais que ela seja “diminuída”, sentimos a pressão e a força contrária que ela exerce. Assim funciona a lei da criação, que ao ser pressionada pelo pecado, mesmo que diminuída, não se desintegra, mas exerce uma força contrária diante da força do pecado. Quando o pecado é eliminado, a mola da lei da criação permanece inalterada para o fim ao que foi destinada; a lei da criação choca-se com suas criaturas, está em vigor e ativa (WOLTERS, 2006, p. 72).
Em termos dicotômicos, muitas vezes a palavra “mundo” é entendida em termos gnósticos, como parte da criação que é deturpada e pervertida. A palavra mundo é usada de diferentes maneiras na Bíblia. Pode ser usada como criação, como na expressão “desde a fundação do mundo”; como “terra habitada”; ou quando Paulo escreve: “em todo o mundo, é proclamada a vossa fé (Rm 1.8) (WOLTERS, 2006, p. 73). Em termos negativos, mundo, representa algo que polui e que os cristãos devem evitar (Jo 18.36; Rm 12.2; Tg 1.27; 2Pe 20.20). Para Wolters (2006, p. 74), quando Paulo usa o termo mundo, de refere “à totalidade da vida não redimida dominada pelo pecado fora de Cristo”. O mundo pode se referir à criação infectada pelo pecado, para onde a direção da humanidade se inclina; ou como a depravação da terra e antítese da bondade criacional (WOLTERS, 2006, p. 74). Mundo, em termos negativos se refere a uma direção e não uma estrutura intrínseca da criação.
Mas, muitos cristãos possuem convicções e um entendimento errôneo de entender mundo como estrutura. Alguns se referem ao mundo como uma área limitada da criação, onde é denominada de “secular” ou “mundano” como a política, a arte, o esporte, o entretenimento, o conhecimento secular etc. A dicotomia sagrado-secular é predominante no entendimento de muitos cristãos. Isso possibilita afirmar que na igreja não é possível haver mundanismo e que na esfera secular e mundana não há santidade. Essa dicotomia é uma “tendência gnóstica profundamente arraigada de depreciar um domínio da criação (sociedade e cultura) com relação a outro” (WOLTERS, 2006, p. 74).
Por causa dessa teoria dos “dois-domínios”, secular e santo, os cristãos possuem grande culpa em potencializar a secularização do ocidente desde os tempos do Iluminismo.
Se a vida política, artística, industrial e jornalística […] está marcada essencialmente como “mundana”, “secular” e “profana” e parte do “domínio natural da vida humana”, é de admirar que os cristãos não tenham lutado mais efetivamente contra a maré do humanismo na nossa cultura? (WOLTERS, 2006, p. 75)
A queda afetou toda a extensão da criação terrena, levando a humanidade para a direção do pecado. O pecado não é uma estrutura criacional, mas um parasita da criação, que à medida que afeta e corrompe a terra, ele torna-as mundanas, seculares, terrenas. “Consequentemente, cada área do mundo criado clama por redenção e pela vinda do reino de Deus. (WOLTERS, 2006, p. 77).
4. CULTURA E PECADO
4.1 Sujeição dos seres humanos
A consequência da queda tem a ver com sujeição entre os seres humanos, principalmente na relação da mulher com o homem. Gênesis 2.18 relata que não é “bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda”. “Não é bom” é a primeira vez que aparece em um cenário em que todas as coisas criadas eram boas. Isso significa que ser humano sozinho não é bom, por isso Deus resolve criar uma auxiliadora para Adão. A palavra “auxílio” ou “ajuda”, “que o varão necessita, é a mesma que se emprega repetidas vezes para indicar que Deus é o ‘ajudador’ de Israel e dos fiéis” (GONZÁLEZ, 2011b, p. 63). Um exemplo desse termo está em Salmo 33.20 diz que “nossa alma espera no Senhor, nosso auxílio e escudo”. Ajudar não é um atributo de serviçal e submissão, ou de assentir o que o outro solicita, mas de socorrer e apoiá-lo com força. Isso significa que a mulher não é submissa ou serviçal do homem para executar tarefas domésticas, mas de “socorrê-lo com força, apoiá-lo com vigor […] porque a mulher é forte e fonte de fortaleza”. (GONZÁLEZ, 2011b, p. 63). Outro termo em destaque é “que lhe corresponda” (Gn 2.18) termo que em hebraico significa “como diante dele”, como uma imagem refletida no espelho. “O que se busca […] não é uma ‘ajudante’, e muito menos um ser inferior, mas um ser que, por ser igual ao varão, lhe possa ser de real ajuda e apoio, como Javé é para Israel (GONZÁLEZ, 2011b, p. 63).
Há um contraste entre a idoneidade do homem e da mulher em relação a nomeação de animais, ordenada como tarefa ao homem. No mundo antigo, nomear alguma coisa significa reivindicar autoridade e poder sobre o nomeado. Ou seja, no mandado cultural dado por Deus, o homem, ao nomear os seres, declara domínio e poder sobre a criação que Deus fez. Isso é diferente de “ser idônea”, como a mulher era. É importante notar que após a queda, a mulher que antes era “ossos do meu ossos” (Gn 3.20, NVI) e “varoa” (Gn 3.20, ARA), denotando essa idoneidade, agora, em Gênesis 3.20, é dominada: “deu o homem o nome de Eva a sua mulher”. O homem reivindica autoridade também sobre a mulher, fato este que perdura, historicamente, onde a mulher é inferiorizada, escravizada e muitas vezes considerada propriedade do homem (GONZÁLEZ, 2011b, p. 64-65).
4.2 Relações homem/terra
As consequências da queda atingiram também a terra (Gn 3.17-19), onde não mais possível apenas cultivar. Agora, o ser humano precisa lutar contra a natureza, tirando o fruto com força em uma terra que não quer produzir. Essas consequências atingem todas as culturas, que enfrentam dificuldade por conta da falta de moradia, da fome e da exploração dos mais fracos. Na história culturas subjugaram outras, quase que extinguindo-as através da escravidão, da guerra, do genocídio. A cultura ocidental, como poucas culturas possui o ensejo de dominar o mundo, como se as demais culturas e a natureza fossem inimigas (GONZÁLEZ, 2011b, p. 65). González (2011b, p. 66) chama isso de distorção de cultura promovido pela queda, onde “toda cultura reage ao meio ambiente e promove a exploração dos fracos e sua sujeição aos mais fortes.
Toda a cultura carrega o selo do pecado em suas próprias práticas internas, no modo como se organiza, na forma pela qual justifica a opressão e a injustiça, e frequentemente na maneira como pretende se impor sobre outras culturas. (GONZÁLEZ, 2011a, p. 66)
Podemos concluir inicialmente, que, por causa do pecado, a maiorias das culturas possuem ambições imperialistas em dominar e explorar a terra e seus recursos como o modo de enriquecimento e prosperidade – onde os mais fracos e oprimidos fazem parte de um sistema ineficaz e desigual na sociedade de consumo e capitalista, muitas vezes marcadas pelo patriarcalismo (sujeição da mulher ao homem). Isso é o resultado da distorção que o pecado ocasionou: o ser humano esqueceu o que é ser humano (GONZÁLEZ, 2011b, p. 72) em sua identidade.
4.3 Cultura e diversidade: uma leitura a partir de Gênesis 11
Diante dessas distorções, percebemos, historicamente, o desenvolvimento plural das culturas. Essa pluralidade e diversidade, foram, muitas vezes, frutos de muitas guerras e conflitos sangrentos (GONZÁLEZ, 2011b, p. 79).
Quando voltamos às narrativas de Gênesis, percebemos a raiz dessas distorções. Em Gênesis 11.1, havia uma só cultura e linguagem; em seguida, percebemos uma migração para Oriente, na terra de Sinar, localizada na Mesopotâmia (Gn 11.2). Sinar era uma planície fluvial que não havia pedras, mas barro. Através do manuseio desse material, as pessoas desenvolveram tijolos (Gn 11.3). “Como sempre […] desenvolvimentos culturais são seguidos de sonhos de grandeza e poder” (GONZÁLEZ, 2011b, p. 81-82). Construções em pedras, no mundo antigo não possuíam grandes alturas, mas os tijolos podiam ser fabricados em tamanhos e dimensões de acordo com a situação. Isso possibilitou a construção de edifícios cada vez mais altos, como a Torre de Babel, p.e. (GONZÁLEZ, 2011b, 80) (WALTON, 2018, p. 48-49). Essa possibilidade de desenvolvimento cultural foi seguida de um ideal de grandeza e poder.
Evidencia-se que em muitas culturas, quando utilizam e exploram os recursos da terra, é movida com a intenção de “sonhar com um poder que chegue ao céu”. Essa tentativa de afirmar autoridade através do uso de recursos e exploração é a trágica consequência da dúvida da fidelidade Deus e da distorção do que é ser humano. (GONZÁLEZ, 2011b, p. 81).
Para compreendermos melhor o desenvolvimento cultural na narrativa de Gênesis 11, analisaremos sete partes que podem ser organizadas em uma estrutura chamada quiasma:
A. Declaração introdutória: toda a terra tinha a mesma língua (v. 1)
B. Viagem para um lugar e estabelecimento – Sinar (v. 2)
C. Discurso humano: “Vem, vamos…” (vv. 3-4)
D. Deus desce para ver (v. 5)
C’. Discurso Divino: “Vem, vamos…” (vv. 6-7)
B’. Dispersão – Babel (vv. 8-9a)
A’. Declaração final – Deus confundiu a língua de toda a terra.
Através dessa análise narrativa, podemos perceber que havia uma cultura, uma linguagem e um lugar para as pessoas se estabelecerem, mas no final, as línguas foram confundidas, e as pessoas foram espalhadas do lugar, impossibilitando de continuar a construção de uma cidade. Percebe-se que entre os discursos das partes C (humanos) e C’ (Deus) está a seção D – Deus desce para ver o que as pessoas estão fazendo: eles construindo uma torre que atinge o céu e sentencia julgamento. O tijolo que deveria ser usado para abrigar pessoas, são usados com a intenção de usurpar o lugar de Deus, chegando ao céu. Com medo de serem espalhados, agora acabam espalhados por causa da construção da torre.  (GONZÁLEZ, 2011b, p. 81).
A sentença de Deus foi estabelecida por causa da soberba humana de ocupar o lugar de Deus. No entanto, há uma outra face dessa ação. González (2011b, p. 82) explica:
A confusão de línguas é uma atitude libertadora da parte de Deus. Os seres humanos se tornaram escravos da sua soberba. Em vez de usar seu poder de criar cultura para o bem da terra e da humanidade, querem empregá-lo para alcançar o céu, ou seja, para usurpar o poder de Deus. Ao confundir suas línguas, Deus destrói seus sonhos de grandeza, a grande cidade é abandonada, e a soberba cai por terra. A confusão de línguas, ao mesmo tempo em obriga a humanidade a abandonar o projeto da grande torre, permite-lhe retornar a seu projeto legítimo de cultivar o jardim, de dominar sobre a criação em nome de Deus e como representante dele.
Toda a cultura é finita. Não há um modelo ou estereótipo de cultura idealizada e que habita a terra. A diversidade de cultura é o freio para tendências imperialista de tentar ser igual Deus, usando os recursos como o modo de poderio e enriquecimento. “Monocultura” no sentido de sociedade, seria catastroficamente, o “resultado idolátrico semelhante aos construtores de Babel” (GONZÁLEZ, 2011b. p. 83).
Em contraste ao projeto humano de criar uma cidade que alcance o céu, vemos uma outra narrativa que propõe o contrário – o Pentecostes. Em At 2.17-18, as pessoas recebem o poder do Espírito Santo, onde não somente os doze apóstolos, mas todos os filhos, filhas, jovens, velhos, servos e servas recebem esse poder sem intuito imperialista e de usurpação do lugar do Deus. De uma narrativa onde os homens tentam alcançar o céu, para um episódio que o Espírito Santo de Deus desce do céu. De uma confusão de línguas, onde os homens não mais se entendem para um momento em que todos escutam em sua própria língua a mensagem de Deus. De um poder imperialista para um poder não-cumulativo, mas compartilhado a todos povos. (GONZÁLEZ, 2011b, p. 86).
A missão da igreja não é centrípeta, no quesito de uma cultura idealizada, em que todos falam uma língua “santa” e que tenham os mesmos modos e costumes culturais. A missão do Espírito santo é fazer todos escutarem as boas-novas do Evangelho, onde a igreja deve desempenhar uma função centrífuga (GONZÁLEZ, 2011b, p. 89). Não podemos também cair na tentação de promover a encarnação do evangelho como uma cultura dominante.
O evangelho de Cristo nos foi apresentado em perspectivas diferentes, em quatro Evangelhos com cores distintas, que no final apresentam o todo completo, uma imagem perfeita. Há quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) com roupagens distintas e perspectivas diferentes que nos impede de imaginar que de algum modo possamos ter uma visão fechada, como um manual delineado. A diversidade dos evangelhos tem uma função similar à de Babel: “impede-nos de imaginar que o céu esteja ao alcance de nossos esforços, ou que a verdade infinita de Deus caiba em nossas mentes frias” (GONZÁLEZ, 2011b, p. 94). A diversidade dos Evangelhos não pode ser vista de forma fragmentada, mas como um todo, assim como não podemos ver a fé cristã encarnada em nossa própria cultura, igreja ou tradições como um fim em si mesmo, “mas como parte de uma multiplicidade de culturas, experiências, interesses e perspectivas a partir dos quais diversos grupos se aproximam do evangelho” (GONZÁLEZ, 2011b, p. 96).
CONCLUSÃO
Concluímos que o pecado não pertence à criação de Deus, como uma estrutura delineada; ele é uma direção, um parasita que corrompe e mancha a boa criação. Deus é soberano para com a condução do universo criado e não permitirá que o pecado siga até o fim de seu propósito destruidor. Deus é fiel e continua administrando a agenda da criação restringindo e os efeitos devastadores do pecado.
Voltando à metáfora da orquestra, quando afirmamos que algo da criação é mal, estamos concluindo que o violino, p.e., não é bom e não é digno de fazer parte do conjunto, e que quem o construiu (Deus) não é bom o suficiente. Chamar a estrutura (criação) de pecado, secular, mundano é negar a afirmação que o que Deus fez foi bom. Pecado é direção e não estrutura, é um sistema que desafina os instrumentos da orquestra. Pecado é um parasita que direciona a estrutura criacional para o mal. Deus, como o regente da orquestra, apresenta um plano eficaz de redenção e restauração dela, para que ela desempenhe o concerto mais belo e maravilhoso, para qual foi designado a realizar.
Por fim, toda cultura é finita e toda a cultura foi afetada pelo pecado. A diversidade de cultura é o freio para tendências imperialista de tentar ser igual Deus, usando os recursos como o modo de poderio e enriquecimento. “Monocultura” no sentido de sociedade, seria catastroficamente, o “resultado idolátrico semelhante aos construtores de Babel”.
REFERÊNCIAS
FOWLER, James W. Estágios da fé. São Leopoldo: Sinodal, 1992
GOHEEN, Michael W. Introdução à cosmovisão cristã. São Paulo: Vida Nova, 2016.
GOLDSWORTHY, Graeme. Introdução à teologia bíblica: o desenvolvimento do evangelho em toda a Escritura. São Paulo: Vida Nova, 2018.
GONZÁLEZ, Justo L. Cultura e evangelho: o lugar da cultura no plano de Deus. São Paulo: Hagnos, 2011.
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