As últimas semanas trazem acontecimentos reveladores de um aspecto
peculiar da “luta política” no Brasil, como a entendem o PT e o governo
que ele lidera. Poderia ser resumido em dois conceitos: o relativismo
como ideologia e a tática de recolher dividendos políticos sem se
envolver diretamente, tirando, como se diz, a castanha do fogo com a mão
do gato.
A moral da fábula do macaco esperto, que, faminto, mandava o bichano
recolher as castanhas das brasas, esteve visível nos sucessivos
movimentos na USP. A chamada extrema esquerda desencadeou ações
violentas, e o petismo saiu a criticar a “falta de diálogo” e a “falta
de democracia”, que supostamente estariam na raiz dos distúrbios.
De olho no voto moderado, o PT não quer para si os ônus do
radicalismo ultraminoritário, mas pretende sempre recolher os bônus de
apresentar-se como a solução ideal para evitar essa modalidade de
movimento político. Como se, em algum lugar do mundo ou momento da
história, o extremismo, de direita ou de esquerda, tivesse sido contido
apenas com diálogo e negociação. É um discurso conveniente, pois se
apresenta como alternativa “racional” de poder. Uma vez lá, os tais
movimentos serão cooptados na base da fisiologia e, se necessário, da
repressão. Os críticos exigirão “coerência”, e o partido fará ouvidos
moucos.
Mas a vida é mais complicada do que esses esquemas espertos. À medida
que vai acumulando força, o PT precisa lidar com desafios concretos, e
aí surge a utilidade do relativismo. Querem um exemplo? Quando um
governante adversário cuida de garantir o cumprimento da lei e de manter
a ordem pública, o aparato de comunicação sustentado com verbas
públicas sai a campo para denunciá-lo, atacá-lo, desgastá-lo a qualquer
custo. Quando, no entanto, esse governante é do PT ou aliado próximo, a
posição inverte-se.
Se o adversário cumpre a lei, é acusado de “criminalizar os
movimentos sociais”; quando um deles cumpre a mesma lei, então são eles a
criminalizar. Assim, os PMs em greve na Bahia governada pelo PT são
chamados de “bandidos”. Cadê o exercício do entendimento, a tolerância?
Em São Paulo, em 2008, o PT ajudou na organização de uma marcha de
policiais civis grevistas em direção ao Palácio dos Bandeirantes —
marcha que, felizmente, não atingiu os objetivos sangrentos almejados.
Em estados governados pelo petismo e aliados, são rotineiras as
reintegrações de posse, mas quando precisa acontecer em São Paulo, por
exemplo, a mando da Justiça e sempre sob a sua supervisão, o PT – e eis
de novo a história das castanhas – cavalga o extremismo alheio para
denunciar inexistentes violações sistemáticas dos direitos humanos.
Nunca ofereceu uma possível solução ao problema social específico, mas
apresenta-se incontinenti quando sente a possibilidade de sangue humano
ser vertido e transformado em ativo político.
Vivemos uma era em que o oportunismo político do PT acabou ganhando o
status de virtude. Perde-se qualquer referência universal ou moral de
certo e errado, e essa separação é substituída por outra. Se é o partido
quem faz, tudo será sempre correto — os fins justificam os meios, seja
lá quais forem esses fins. Se é o adversário, tudo estará sempre errado,
pois suas intenções sempre seriam viciosas. A política torna-se
definitivamente amoral.
É uma lógica que acaba derivando para o cômico em algumas situações.
No atual governo, os ministros foram divididos em duas classes. Alguns
são blindados, podem dar de ombros quando são alvos de acusações; outros
são lançados ao mar sem muita cerimônia. Quando é do PT, especialmente
se for do grupo próximo, a proteção é altíssima. Mas, se tiver a sorte
menor de ser apenas um “aliado” — conceito que embute a possibilidade de
se tornar futuramente um adversário —, logo aparecem os vazamentos
dando conta de que “o Palácio” mandou o infeliz explicar-se no
Congresso, a senha para informar aos leões que há carne fresca na arena.
Essa amoralidade essencial estende-se às políticas públicas. Em 2007,
quando governador de São Paulo, aflito com o congestionamento
aeroportuário, propus ao presidente Lula e sua equipe a concessão à
iniciativa privada de Viracopos, cujo potencial de expansão é imenso.
Nada aconteceu. Na campanha eleitoral de 2010, a proposta de concessões
foi satanizada. Pois o novo governo petista adotou-a em seguida!
Perdemos cinco anos! E adotou-a privatizando também o capital estatal: o
governo torna-se sócio minoritário (49% das ações) e oferece crédito
subsidiado (pelos contribuintes, é lógico) do BNDES. Tudo o que era pra
lá de execrado passou a ser “pragmatismo”, “privatização de esquerda”.
O ridículo comparece também à internet, onde a tropa de choque
remunerada, direta ou indiretamente, com dinheiro público e treinada
para atacar a reputação alheia desperta ou se recolhe em ordem unida,
não conforme o tema, mas segundo os atores. São os indignados
profissionais e seletivos. Como aquelas antigas claques de auditório,
seguindo disciplinadamente as placas que alternam “aplaudir”,
“silenciar” e “vaiar”.
Vivemos tempos complicados, um tanto obscuros, algo assim como “se
Deus está morto tudo é permitido” — e chamam de “pragmatismo” o
oportunismo deslavado. A oposição, a despeito de notáveis destaques
individuais, confunde-se no jogo, dado o seu modesto tamanho, mas também
porque alguns são sensíveis aos eventuais salamaleques e piscadelas dos
donos do poder. Um adesismo travestido de “sabedoria”. A política real
vai se reduzindo a expedientes necessários à manutenção do poder e à
mitigação do apetite dos aliados. A conservação do statu quo supõe uma
oposição não mais do que administrativa e burocrática. Parece que a nova
clivagem da vida pública é esta: estar ou não na base aliada, de sorte
que a política se definiria entre os que são governo e os que um dia
serão.
Não sou o único que pensa assim, mas sou um deles: política também se
faz com princípios, programa e coerência. E disso não se pode abrir
mão, no poder ou fora dele.
FONTE: http://www.joseserra.com.br
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